sexta-feira, 24 de abril de 2015

Já há muito tempo que não escrevo. Ando envolta numa nuvem de pensamentos, mudanças, crescimento, preparação, auto-conhecimento.
Isto de estar grávida pela segunda vez, depois de um parto difícil, tem sido uma verdadeira aventura interior. Ora estou calma e tranquila ora no segundo a seguir estou apavorada. Apenas consigo pensar no dia do meu parto, ao qual espero sobreviver, e espero poder trazer ao mundo um bebé saudável, o meu filho. É o único pensamento e objectivo que consigo ter nesta altura da minha vida. Que esse dia corra bem.
Tudo o que vier para além desse dia, o simples gesto de poder segurar o meu filho nos braços, já no meu espaço e rodeada da minha família, será a maior benção que a vida me poderá dar.

O abuso obstétrico é daquelas coisas de que ninguém fala.
É um tema desagradável que nos deixa desconfortáveis. Muitas pessoas nem estão familiarizadas com o tema, mas ele existe, está presente no dia-a-dia de muitas mulheres e em muitas casas. Fragiliza o ego, envergonha-nos, faz-nos sentir menos mulheres e menos capazes de parir.
Sentimos que o nosso corpo não foi feito para dar à luz e que ninguém nos amparou no momento mais difícil das nossas vidas. No momento em que a linha entre a vida e a morte pode ser muito ténue, em que a vida de um recém-nascido está em jogo.
Revolta-me muito ouvir falar de sonhos destruídos. Tantos pais e mães que viram os seus sonhos destruídos por irem parar às mãos erradas.
Entram num hospital com o misto de sentimentos que é saberem que vão conhecer o ser pequenino que acolhem no ventre há 9 meses, a contrastar com o medo do desconhecido, da história que terão para contar em breve. Será doce?
Médicos que falam em tom de gozo, enfermeiros que não levam a sério as nossas queixas, que ignoram pedidos de ajuda, que reviram os olhos ao ouvir as perguntas das mães assustadas que ali estão, num ambiente totalmente estranho, cheiros e lençóis que não são os nossos. Fios, agulhas, monitores que apitam, os gemidos de quem está a parir no quarto ao lado...
Cada vez mais estou convencida que este ambiente tão intimidante e assustador retrai o corpo da mulher, retrai-nos a força e a nossa mente fica ali a pairar, a ouvir os passos no corredor, a tentar adivinhar qual será o próximo procedimento. Será mais um toque? Quantos enfermeiros virão desta vez? Porque é que me sinto parva a fazer perguntas sobre o meu estado?
Nenhuma mulher deveria passar por este tipo de tortura.
O parto deve ser nosso. O corpo é nosso, ninguém deveria mandar nele nem impor horas para isto ou para aquilo. Nenhum médico deveria fazer turnos de 20 horas ou mais. São vidas que ali estão.
São casais que têm expectativas, que vão preparados para sofrer mas que saem derrotados, tantas vezes de braços vazios, vítimas de negligência por parte de quem lhes deveria prestar apoio e auxílio.


"As memórias que tenho daqueles 3 dias que passei no hospital estão envoltas numa neblina, parece que não foi comigo. Tenho as minhas memórias toldadas pelo medo. Só queria sair daquele sítio com o meu bebé e ir para casa. Quando saí do hospital senti-me como se estivesse a sair da prisão, depois de anos enclausurada. Chorei o caminho todo até casa, sentia-me tão fraca e fragilizada. Olhava para o meu bebé ali, na sua primeira viagem de carro e sentia um amor imenso. Aí e nos dias que se seguiram era assaltada por pensamentos estranhos relacionados com o fim. Com o saber que um dia aquele ser lindo ía morrer, como todos nós, e que isso era a maior injustiça desta vida.

Engravidei do meu primeiro filho aos 29 anos, sempre tive um enorme desejo de ser mãe, assim como o meu namorado de ser pai. Estava grávida de 39 semanas e 1 dia quando decidimos ir para o hospital Beatriz Ângelo em Loures já com contracções médias e constantes. Fizeram-me ctg, disseram-me que seria nesse dia e para eu andar pelo hospital. Fui vista por uma médica que me fez um toque doloroso e quando me levantei da marquesa as águas rebentaram. Mandaram-me para um quarto, clister, banho, bata, cama, agulha na veia. De vez em quando vinha alguém ver como estava dilatação, lá se ía fazendo aos poucos. Toques e mais toques, e o enfermeiro disse-me que o bebé não queria descer e que quando sentisse uma contracção teria que fazer força. Eu esgotada, lá ía fazendo força, e sentia o meu bebé completamente cá em cima colado às minhas costelas. As dores íam-se tornando cada vez mais difíceis de aguentar e pedi epidural. Estive nisto de fazer força durante horas, ali naquele quarto com o meu namorado, assustada, a dar tudo de mim à espera que algo acontecesse. Era cada vez mais difícil suportar as contracções e ainda tinha que gastar as forças que já se íam perdendo...Entrei no quarto às 17h e por volta das 23h, depois de implorar durante horas, deram-me a epidural, a dor acalmou. Mais força, nada do bebé descer. Aqui já tinha a dilatação completamente feita. Vem o enfermeiro mais uma vez ver como estava a situação com mais um toque, e ouço-o cochichar com um estagiário que eu tenho ali uma condição que algumas mulheres têm e que dificulta o parto, que me deu a entender que era um osso (talvez o púbico) que não deixava que as coisas corressem da melhor maneira. Medo. Preocupação. E agora? Passado mais um bocado, surge o mesmo enfermeiro para um novo toque. Desta vez um toque que supostamente seria "uma ajudinha" e que ele me avisou que iria doer. A dor que senti foi indescritível. Senti como se me estivesse a arrancar tudo por dentro, chorei de dor e todo o meu corpo literalmente dançou na cama, na mão daquele enfermeiro. Quando me lembro deste momento sinto uma revolta enorme, porque nunca passei por uma dor que me transtornasse tanto, que me incomodasse tanto física e psicologicamente (ainda hoje não consigo pensar que isto aconteceu realmente comigo). Quando aquilo acabou vi-o tirar uma luva cheia de sangue, do meu sangue.
Depois disto fiquei de rastos, o meu namorado voltou a entrar no quarto e eu estava desfalecida de cansaço, de dor, de humilhação, de medo, a cara transfigurada. Cada vez que ouvia passos no corredor a aproximarem-me do meu quarto sentia pânico e chorava baixinho, dizia que não queria que eles viessem. Eu só queria que aquilo acabasse. E naquelas largas horas em que ali estive, não pensei que estava feliz porque ía conhecer o meu filho, o meu primeiro filho. Estava bloqueada pelo medo. Pensei que estava metida num grande problema e não conseguia imaginar um final para tudo aquilo.
3 epidurais, e 12 horas depois de ter entrado no quarto, sem ter bebido uma gota de água ou ter comido, entram 3 homens e uma mulher, caras de enterro, cansados, claro, são 5h da manhã e o turno nunca mais acaba. Mandam o meu namorado sair, sem explicações. Ele pergunta o que se passa e dizem-lhe que vão tirar o bebé com ventosas e ele não pode estar presente. Sai de coração partido, sempre imaginámos uma situação um bocadinho mais animadora, um momento mais nosso. Preparam as coisas, mandam-me fazer a maior força possível. Nada. Nem por uma única vez senti vontade de fazer força, nem sei o que isso é. Das vezes que fiz força, nem sei se estava a fazer força. O médico à minha frente puxa a ventosa com quanta força tem. Nada. O enfermeiro ao meu lado empurra-me a barriga com os braços. Nada. "Estou a fazer força bem?" "Sim é isso. Mais força". Nada. Ao meu lado direito, uma mulher de bata, sentada num sofá pequeno de pernas cruzadas a olhar para mim, mão na cara, ar aborrecido. Facada psicológica, vergonha. Porquê a mim? Estou vulnerável, sozinha, desgastada, de rastos, tenho esta mulher com olhar de aço em mim, sinto-me impotente porque não consigo parir e porque não sei nada. Eu não estou ali. Não sou eu. É tudo um sonho maquiavélico e frio e macabro demais para ser a minha história. Tudo cinzento naquela sala. Nunca ouvi uma palavra de carinho, de apoio, de incentivo, um sorriso...
Mais força. Nada. O médico puxa e nada. Falam baixinho uns com os outros, não percebo. Trocam olhares ansiosos. Sinto o médico cortar-me. Dizem que tem o cordão com 2 voltas ao pescoço. Ao fim de umas 7 tentativas, arranca o meu filho de dentro de mim. Põem-no em cima de mim e apenas vejo uns pézinhos roxos. Não chora. Ao fim de 1 segundo tiram-no de mim e levam-no. Não chora. O meu namorado entra e vê o seu filho ser reanimado, roxo, com a carinha torta, a cabeça em forma de cone, uma ferida enorme na cabeça, em sangue pisado. Passado algum tempo ouço o seu choro. Não me lembro do seu choro. Só me lembro de mo mostrarem e aí vi a sua cara durante 3 segundos. Não senti nada. Pensei só que o meu filho era feio. O meu namorado não sorriu nenhuma vez. Estava com uma cara miseravelmente infeliz e preocupada. Estou a ser cosida e numa noutra galáxia, incrédula com tudo, como se tivesse sido atropelada por um camião ou envolta numa onda daquelas que nos sacode e em que tudo é um nó de areia. Não tenho muitas memórias desses instantes. Vestiram o meu filho e o gorrinho só lhe tapava o hematoma e o bico enorme que era a cabeça dele. As enfermeiras chamavam-no marge simpson com sorrisos piedosos e nervosos. O meu namorado pediu para ficar comigo mas não deixaram. Deu-me um beijo, não trocámos grandes palavras, ele foi-se embora. Todos se foram embora. E agora estou num pranto e as lágrimas não me deixam ver o teclado. Uma senhora entra e limpa o sangue e a minha placenta do chão, depois empurra a minha maca até ao recobro. Desse trajecto lembro-me bem porque chorei como um bébé, como nunca antes chorei na minha vida. Chorei porque sabia que o meu namorado estava destroçado, porque sabia que estávamos os dois a chorar sozinhos. Ele no carro, dia a amanhecer, a caminho de casa. Eu longe do meu bebé que estava na incubadora. A senhora dizia-me para não chorar, que já tinha o meu filho e "já passou". Foi a única pessoa que me deu uma palavra, que foi minimamente humana comigo. Até esse momento pensei que não existia, que era um farrapo sem valor e que não merecia consideração da parte de ninguém. Felizmente o meu bebé é hoje um menino lindo, aos meus olhos o mais lindo e especial que já pisou esta Terra. Tive muito medo que ficasse com alguma sequela, e só o passar do tempo nos foi mostrando que felizmente o nosso bebé era normal. A cabeça demorou meses a ficar com um formato normal, mas as cicatrizes rosa no couro cabeludo ainda hoje se mantêm. Não sei se foi o cordão enrolado que dificultou a descida dele, não sei nada. Nunca ninguém me explicou, eu nunca quis perguntar porque só queria sair dali. Saí do hospital sem que ninguém me dissesse que cuidados deveria ter no pós-parto, zero. Nem uma palavra. Tive os cuidados que achei que devia ter mas não me safei de alguns pontos terem infectado. Tive uma recuperação extremamente dolorosa, sem me conseguir sentar ou ter posição para amamentar ou até dormir".


Tenho lido muitos relatos de partos difíceis, feitos por mulheres que depois de muitos meses ou até anos, conseguiram falar sobre os seus traumas e as suas cicatrizes psicológicas. O ego nunca mais volta a ser o mesmo, fica amachucado e doído. Mas falar sobre estes demónios ajuda, afasta-os um pouco mais para longe.
Este poderia ser o relato de muitas mulheres, mas é o meu.
Desta vez irá ser diferente, eu sei que sim.


3 comentários:

  1. Linda.... nem consigo sequer imaginar...
    Que violencia. Que desrespeito. Que falta de humanidade.
    Felizmente o Ivinho é a coisa mais linda das tias do coração <3 <3
    (devo admitir que chorei a ler-te)
    Lots of Love <3
    Com o J será diferente...

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  2. estou tão emocionada e chorei muito a ler isto.
    mas sabes? a primeira vez que vi uma fotografia do teu bebé, achei-o a coisa mais linda do mundo!
    tens um filho lindo e uma família linda, Isa. Quando escrevi sobre ti, no meu blog, nunca imaginei que tinhas passado por isto e peço desculpa não ter feito jus à pessoa forte que és.
    Obrigada por este texto e, fica sabendo, vai correr tudo bem melhor desta vez e o teu futuro menino vai ser tão lindo como o Ivinho :)

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  3. Ontem tive a ler a tua história e tivemos algumas coisas em comum no 1 parto, mas sem comparação alguma que as pessoas comigo foram mais humanas! tive sempre o Rui ao pé de mim, só quando levei a epidural é que não. Também me fizerem uma coisa muito dolorosa como a que descreveste e explicaram o porquê, foi porque o miudo não estava no canal tinha ficado de lado na anca e não estava na posição correcta. Também foi necessária a ventosa no meu caso e o miúdo ficou com um hematoma que passou, tive bastante tempo sem conseguir lembrar-me do que se passou, é um puzzle que iam surgindo peças. E para não falar na recuperação, o primeiro mês também ainda não está muito claro. Agora a parte boa da Laurafoi tudo tão rápido que quando cheguei à sala de partos a parteira perguntou se queria epidural e eu sim claro, mandou chamar o anestesista, veio ver como estava a dilatção e disse, esqueçam o anestesista e chamem o pai rápido, eu entrei em panico porque queria epidural e sabia o que custava e desde que entrei na sala de partos até que ela nasceu foram ai 20 min. e sem comparaçao possivel podia ter mais 10 filhos se fossem todos assim. Isto tudo para te dizer aquilo que passo a vida a ouvir, não há 2 partos iguais e o segundo vai correr lindamente, força e pensamentos positivos.

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